Fim de cota para deficientes afeta inclusão

Sem a obrigatoriedade da contratação de pessoas com deficiência em empresas com pelo menos 100 empregados, talvez Thamiris Tibúrcio Sales, 29 anos, nunca tivesse encontrado uma oportunidade de transformar a vida por meio do trabalho. Criada há 28 anos, pela Lei 8.213/91, as cotas para pessoas com deficiência (PcDs) deixarão de ser obrigatórias caso o Projeto de Lei 6.159/19 seja aprovado.

Thamiris torce para que o projeto proposto pelo Poder Executivo seja rejeitado pelo Congresso Nacional, pois não esquece de todas as dificuldades enfrentadas até ingressar no mercado de trabalho, o que aconteceu há dois anos e meio. Ela conta que desde que conseguiu um emprego como auxiliar administrativa, ela melhorou sua autoestima, sua autonomia e sua vida social.

Enquanto esperava uma oportunidade, ela fez cursos diversos na Associação de Pais e Amigos do Excepcionais (Apae), aprendendo os ofícios de atendente de padaria e lanchonete, auxiliar administrativo e um pouco de inglês.

Durante um desses cursos, ela soube da vaga na R2T Telecomunicações, empresa com várias unidades e cerca de 1,5 mil empregados no total. Quase um terço dessa equipe atua na unidade que Thamiris trabalha, na Mata Escura, onde existem outros 22 PcDs executando funções diversas. Ela conta que ficou bastante nervosa no início, mas que os colegas foram muito receptivos e ajudaram em tudo necessário.

“A autoestima muda. Muda até para a família, que passa a te ver como alguém mais responsável”, comenta sobre os reflexos do ingresso no mercado de trabalho. Thamiris diz que também passou a ter mais momentos de lazer, pois tem mais dinheiro para passear, e ganhou alguns novos amigos na empresa. Quando a equipe se reúne para confraternizações, ela está sempre presente.

Antes do emprego, Thamiris achava suficiente ter concluído o ensino médio, mas agora está decidida a cursar uma faculdade. No cotidiano do trabalho, que vai desde tirar cópia de documentos à montagem de planilhas no Excel, passando pela participação em entrevistas de seleção, ela tomou gosto pela área de administração.

Thamiris ainda não tem certeza de quando começará sua graduação em administração, pois está buscando a melhor forma de conciliar as aulas com o trabalho. Morando no Bonfim, ela sai de casa por volta das 5h30 para pegar o trabalho 7h, de onde sai 17h. “Agora acho difícil viver sem trabalhar”, reforça.

Identidade

A trajetória narrada por Thamiris exemplifica o que a gestora de assistência social da Apae Salvador, Márcia Rocha, defende. Ela ressalta o papel do trabalho na construção de identidade, lembrando o quanto é comum que a profissão exercida seja citada na apresentação de adultos a novos contatos.

Márcia considera que o desenvolvimento de uma atividade remunerada faz com que as pessoas se sintam mais produtivas e também sejam vistas dessa forma, o que ganha peso extra quando se trata de grupos de maior vulnerabilidade social.

A importância do ingresso no mercado de trabalho na inclusão das pessoas com deficiência na sociedade também é destacada pela presidente do Instituto dos Cegos, Heliana Diniz. “Se você não trabalha, você não tem liberdade, não tem opções de crescer, se desenvolver. Outro ponto fundamental é a autoestima”, detalha.

Elas concordam que o Projeto de Lei (PL) 6.159/19 representa um retrocesso ao possibilitar que as empresas troquem o cumprimento das cotas por uma contribuição mensal de dois salários mínimos por cargo não preenchido. De acordo com o texto, esses recursos serão recolhidos para o Programa de Habilitação e Reabilitação Física e Profissional, Prevenção e Redução de Acidentes de Trabalho, do Ministério da Economia.

Uma outra opção apresentada no projeto para cumprir as cotas é a união de duas ou mais empresas para que alcancem conjuntamente o coeficiente de contratação previsto na lei. O PL estabelece ainda que “a contratação de pessoa com deficiência grave será considerada em dobro”.

A Lei 8.213/91 estabelece que empresas que tenham entre 100 e 200 empregados devem destinar 2% das vagas a pessoas com deficiência; nas que têm entre 201 e 500 funcionários, o percentual sobe para 3%; nos empreendimentos que contratem entre 501 e 1.000 pessoas, a cota é de 4%, chegando a 5% nas empresas que tenham mais de 1.001 empregados.

O  Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que integra o Ministério dos Direitos Humanos, sobre o PL em tramitação, ainda não se posicionou  até o fechamento desta matéria.

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA OCUPAM 1% DAS VAGAS DE TRABALHO FORMAL

Mesmo com a determinação legal de que empresas tenham até 5% das vagas preenchidas por pessoas com deficiência (PcDs), dados da Secretaria de Trabalho, ligada ao Ministério da Economia, apontam que PcDs representam somente cerca de 1% do total de carteiras assinadas no país.

 

De acordo com o superintendente dos direitos das pessoas com deficiência da Secretaria de Direitos Humanos da Bahia, Alexandre Baroni, se as cotas para PcDs fossem aplicadas integralmente, no máximo 5% das pessoas com deficiência teriam oportunidades de trabalho. Vale lembrar que, no censo de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicou que 23,9% da população tinha algum tipo de deficiência.

Baroni ressalta que o Projeto de Lei 6.159/19 pretende retirar um direito garantido há bastante tempo, quando deveria se restringir ao foco de regulamentação do auxílio-inclusão (criado em 2015).

O próprio Baroni vivenciou as dificuldades para reinserção no mercado de trabalho desde que um acidente o tornou cadeirante. Na época, ele atuava como engenheiro químico e, após estar liberado para voltar ao trabalho, foi dispensado pela empresa, sob argumento de que não seria viável continuar exercendo aquela profissão.

Lidando com o tema cotidianamente na Assistência Social da Apae Salvador, Márcia Rocha afirma que muitos gestores vêm a contratação de um PcD como perda de força produtiva e, quando vão contratar, tentam achar pessoas que “passe por deficiente”. Ela ressalta que ainda não temos uma cultura inclusiva efetivamente instalada, e a lei de cotas é parte fundamental no processo de mudança que se faz necessário.

Márcia considera que o PL trata o tema por um viés puramente econômico, e a tendência é que a maior parte das empresas usem essa brecha legal para não contratar PcDs. Ela entende que em alguns setores específicos seja mais complicado ter funcionários com deficiência, mas avalia que mudanças na lei precisam passar por ampla e cuidadosa discussão.

Para o coordenador do Grupo de Atuação Especial de Defesa dos Direitos dos Idosos e das Pessoas com Deficiência do Ministério Público da Bahia, Ulisses Campos, embora o preconceito na contratação de PcDs esteja diminuindo, esse processo de inclusão ainda precisa de suporte legal. “É uma ação afirmativa que encontra força e esforço na lei. A cota faz com que essas pessoas sejam equalizadas dentro da sociedade”, defende.

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