Estudo brasileiro acha variante de DNA ligada a maior chance de obesidade em mulheres negras
A intensa miscigenação entre pessoas de origem indígena, europeia e africana que caracteriza a população brasileira ajudou cientistas a identificar uma variante de DNA que está associada a um risco mais alto de obesidade em mulheres. Trata-se de uma variação de origem africana, mais comum nas adultas que carregam proporção maior de herança genética da África.
Embora esteja presente em apenas 1% dos participantes do estudo, a variante de DNA é duas vezes mais comum em mulheres obesas e quase 10 vezes mais prevalente nas que têm obesidade mórbida.
Pode parecer pouco, mas trata-se de um dos efeitos genéticos mais marcantes já identificados no caso da obesidade, que é uma característica complexa e multifatorial –ou seja, surge a partir de diversas influências, que incluem tanto centenas de genes diferentes quanto alimentação, atividade física e estresse, por exemplo. Além disso, ainda são raros os trabalhos mundo afora a levantar esses dados em populações não europeias e miscigenadas (apenas 5% dos indivíduos incluídos em estudos do tipo não são europeus).
Coordenado por pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e com participação de equipes de Peru, dos EUA, da Austrália e de países africanos, o estudo acaba de sair no periódico International Journal of Obesity. O trabalho integra o projeto Epigen-Brasil, um esforço mais amplo para mapear a interação entre a diversidade do DNA da população brasileira, em especial sua natureza miscigenada, e fatores que afetam o surgimento de doenças complexas.
“Decidimos fazer o estudo da obesidade por mapeamento de miscigenação em 2016, a partir de dados já existentes do projeto Epigen-Brasil”, conta o professor Eduardo Tarazona-Santos, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG.
Encontrar variantes genéticas que tenham uma associação significativa com problemas de saúde complexos equivale, em certo sentido, à proverbial busca por uma agulha num palheiro. Em geral, os pesquisadores dependem de grandes amostras populacionais –dezenas ou centenas de milhares de pessoas–, cujo DNA é comparado em busca de associações entre diferentes formas dele à doença que se quer estudar (digamos, o aparecimento de certo tipo de câncer em quem carrega determinada troca de “letra” no DNA no cromossomo 10).
Fazer essa busca em populações miscigenadas pode ser menos trabalhoso porque seus cromossomos já estão subdivididos num mosaico de “bloquinhos” de DNA, herdados de seus diferentes povos ancestrais (veja infográfico), explica a primeira autora do estudo, Marília de Oliveira Scliar. “Então, inicialmente, é possível fazer a associação entre esses blocos e a característica de interesse. Depois, fazemos um mapeamento fino para identificar a região específica dentro deles.”
Para isso, a equipe se valeu inicialmente de três grupos de voluntários cujo estado de saúde está sendo estudado a longo prazo no Brasil. São 3.653 habitantes de Pelotas (RS), todos nascidos em 1982; 1.442 idosos de Bambuí (MG); e 1.246 moradores de Salvador, acompanhados desde 1997, quando eram crianças. Para medir a incidência de obesidade, os pesquisadores dispunham de dados sobre o IMC (índice de massa corporal, correspondente ao peso da pessoa dividido pela altura elevada ao quadrado).
A partir dessa base de dados e das informações sobre ancestralidade, a equipe acabou flagrando uma variante de apenas uma “letra” de DNA, na população de Pelotas, que apresenta considerável associação com a obesidade. Ela foi achada em 31 mulheres, sem parentesco entre si e IMC mais alto que a média do grupo (28 contra 23, respectivamente).
O DNA delas, além disso, tinha 35% de contribuição africana, contra 16% da média do grupo gaúcho, mas várias delas se autodeclaram como brancas, o que mostra como a ancestralidade dos brasileiros é bem mais complexa do que a aparência física ou autopercepção social indicam.
A associação entre a “letra” de DNA e a obesidade também foi identificada em idosas de São Paulo, que participaram de outro estudo genômico, e nas de Bambuí, mas não em Salvador. Fora do Brasil, o efeito da variante também foi visto em mulheres de Soweto, na África do Sul. Além disso, os pesquisadores verificaram que, embora seja raríssima entre europeus, a variação aparece em 3% dos habitantes da África Ocidental, em locais como a Nigéria, que sabidamente foram afetados pelo tráfico de escravizados para o Brasil.
O que ainda não está claro é como exatamente a variante influencia o organismo. É possível que se trate de uma região regulatória do DNA. Ou seja: ela não contém a receita para a produção de nenhuma molécula do organismo, como acontece com os genes propriamente ditos, mas poderia afetar a ativação ou desativação de um ou vários genes. Uma hipótese do grupo, por causa da ligação da variante com a obesidade em mulheres adultas, é que ela esteja associada ao acúmulo de reservas de gordura para a gestação e a amamentação –algo que, combinado à dieta calórica e ao sedentarismo modernos, facilitaria o aparecimento da obesidade.
Para o médico Bernardo Horta, professor da Universidade Federal de Pelotas e coautor do estudo, o trabalho aponta um caminho de pesquisa que ainda precisa ser intensificado no Brasil. “Precisamos de mais dados de estudos de base populacional, coletados ao longo da vida. Só assim poderemos visualizar mais claramente as associações e interações entre genes e ambiente”, diz ele.
Fonte: Folhapress