Folia pra quem: com patrocínios milionários e camarotes de luxo, Carnaval de Salvador exibe segregação nos circuitos
Se tem uma palavra que passou a traduzir bem o Carnaval de Salvador é grandiosidade. Sim, grandiosidade na alegria e animação – pelo menos para alguns. Mas não é só isso, vejam só os números: três milhões de visitantes, receitas na casa do bilhão para o comércio e o turismo, dezenas de blocos e camarotes que chegam a custar mais de R$ 3 mil a diária e um calendário que se estende cada vez mais pelo verão soteropolitano. A pergunta que fica, no entanto, é para quem chegam os impactos de toda essa grandiosidade?
O que começou como a expressão da espontaneidade do povo baiano foi literalmente comprado por grandes empresários e transformado em uma indústria de fazer dinheiro e fortalecer a desigualdade. A corda que separa o folião pipoca daqueles que vestem um abadá é simbólica. A fotografia dessa divisão também: um aglomerado de pessoas brancas correndo atrás do trio, cercadas por uma massa negra suscetível a qualquer intercorrência fora das cordas. E no meio de tudo isso, os trabalhadores. Que, claro, enxergam no Carnaval não só a folia e brincadeira, mas principalmente uma forma de renda. Na maioria das vezes, é até o maior rendimento do ano para uma família. E olha que estamos falando de diárias de R$ 80, como é o caso dos cordeiros.
Do povo para os empresários
A ironia de tudo isso é que esse Carnaval de rua não foi criado pela elite e muito menos pelos empresários. Eles, na verdade, se apossaram desse modelo. O historiador Rafael Dantas conta que lá na segunda metade do século 19, a festa era dividida entre as iniciativas populares que se aglomeravam nas transversais da Rua Chile e na Baixa do Sapateiros; enquanto grandes festas tomavam os salões baianos, clubes, associações e casas de festa. Os foliões mais experientes devem recordar bem da folia momesca em espaços como o Clube Fantoches da Euterpe e o Clube Bahiano de Tênis. Apesar das diferenças, ambas as versões do Carnaval soteropolitano traziam, segundo Dantas, a espontaneidade do baiano e o desejo de comemorar.
“Por mais que tivéssemos os Carnavais privados, que evidentemente tinha um valor inserido atrás disso e uma ideia muito hierarquizante de que determinadas famílias tinham acesso, não tínhamos o contexto tão mercadológico que a gente encontra hoje […] Era muito mais uma comemoração, evidentemente, que seguia essas questões de divisão de classe, mas não tão mercado ou de uma indústria do Carnaval como começou a se transformar, especialmente a partir da segunda metade do século 20”, explica o historiador.
Cheque assinado e Carnaval comprado
Desde 2005, cotas de patrocínio ao Car – naval de Salvador são comercializadas pela prefeitura. Naquele ano, foram captados cerca de R$ 7,5 milhões. A contrapartida oferecida ao patrocinador, na época, era a exibição das marcas. E foi assim até 2013, primeiro ano com ACM Neto (União) à frente da gestão municipal. No ano seguinte, o então prefeito instaurou um novo modelo de cota de patrocínio, que na prática vendia a exploração do consumo dentro do circuito para os anunciantes. Desde então, a negociação com grandes cervejarias prevê exclusividade de venda dos produtos no Carnaval.
Na época, a iniciativa virou alvo de críticas de todos os lados. Enquanto juristas defendiam que o modelo iria restringir o livre-comércio em uma festa que ocorre em via pública, os foliões reclamavam da falta de alternativas. Nos três primeiros anos, por exemplo, o patrocínio foi firma – do com a empresa Brasil Kirin, da cerveja Schin, que não é das mais populares no estado. Por isso, os próprios ambulantes também não ficaram satisfeitos e chegaram a protestar no circuito. Mas, na época, o movimento foi classificado pelo prefeito como “baderna”.
Outros questionamentos giravam em torno do percentual de 20% para a empresa responsável pela captação dos patrocínios. Afinal, era realmente preciso um intermediário (ainda mais com uma fatia tão expressiva da verba) para captar anunciantes em uma festa com um apelo tão grande para as empresas? No Carnaval do ano passado, as patrocinadoras oficiais da festa foram a rede social TikTok, o site de entretenimento Aposta Premiada e a Ambev, da cerveja Brahma. Só os blocos e camarotes tinham autorização para divulgar, distribuir, vender outras marcas.
Barões navegando num mar de folia
Os donos de blocos e camarotes são os que mais curtem toda essa folia. Para eles, Carnaval não tem nada de brincadeira, mas sim de lucro. Um dia em um bloco pode chegar a quase R$ 1,5 mil para o folião. Multiplicando esse valor por 3,5 mil associados – número que alguns blocos chegam a ter por dia – a receita chega a R$ 5 milhões. Já em um camarote o valor pode saltar para R$ 3,5 mil por dia, com estruturas super luxuosas, que dão acesso privativo à praia, passeio de helicóptero e todo tipo de bebida, não só as patrocinadoras.
No mesmo Carnaval em que um abadá pode custar até R$ 1,5 mil, um cordeiro vai receber por diária de trabalho, segurando uma corda em um percurso de quase 5 quilometros e um milhão de pessoas, R$ 80. E isso, depois de muito esforço e negociação. A categoria entrou em um acordo com os empresários na semana passada. O valor, no entanto, ficou muito aquém dos R$ 150 pedidos inicialmente.
Em entrevista à Rádio Metropole, o presidente do Sindicato dos Cordeiros (Sindicorda), Matias Santos deixou claro que o reajuste não atende às necessidades da categoria e cobrou melhores condições de trabalho. “É um valor que não corresponde à expectativa tanto social quanto econômica, mas os blocos alegam que o Carnaval de Salvador ainda não deu aquela retomada devido à pandemia e à baixa do axé music”, afirmou.
Cores, folia e segregação
Escritor, jornalista e conhecedor da história do Carnaval soteropolitano, o colombiano Nelson Cadena lembra que a folia soteropolitana desde 1901 já era usada como um instrumento mercadológico. Eram faixas, fantasias, carros alegóricos de propaganda e cartazes de patrocinadores nos trios que posteriormente surgiram. Obviamente, nada comparado às dimensões atuais. Mas o crescimento desta visão industrial, que levou ao surgimento dos blocos e camarotes nos moldes de hoje, foi também o que tirou a festa do folião pipoca.
“Num determinado momento de Carnaval, talvez década de 80, de 90, o povo realmente foi excluído da festa, quando eu digo povo eu falo do folião pipoca, em função da quantidade de camarotes que foram montados ao longo do circuito, em função dos blocos de cordas que praticamente ocupavam todo o espaço da Avenida”, conta Cadena, que, apesar dessa história recente, enxerga avanços nos últimos anos. Para ele, a volta dos trios independentes está aos poucos trazendo de volta o folião pipoca como o destaque da festa. “Isso foi uma grande mudança para o Carnaval da Bahia”, analisa.
É por essa visão radicalmente mercadológica que o circuito Osmar (Campo Grande-Avenida) há anos agoniza no Carnaval. Que os blocos afros perdem cada vez mais espaço. E que a cidade vive uma segregação disfarçada de folia: com a elite em suas torres vendo os artistas passarem; e o restante da população em rotinas desumanas de trabalho nos circuitos. Quando cabe a ela a diversão, é limitada por cordas ou na frente de pequenos palcos montados em bairros periféricos.
Em detrimento dessa indústria cultural e de negócios, a essência do Carnaval de Salvador é a festividade, a pluralidade e a identidade do povo baiano. É assim que avalia o historiador Rafael Dantas. “O Carnaval nem sempre foi um negócio milionário. É muito mais uma questão de hoje do que antigamente. E quando a gente vê essas reclamações de uma ausência de protagonismo, é realmente algo para nos preocuparmos, porque falar da festa é justamente falar desse destaque àquelas pessoas que durante muito tempo foram invisibilizadas […] E isso a gente não pode perder de vista, a gente não pode abrir mão disso para valorizar outras expressões excludentes de Carnaval”, afirma.
Fonte:METRO 1