Epidemia de picaretagens: Medicina vira arena de vale tudo com condutas antiéticas e criminosas

Na língua portuguesa, picaretagem é traduzida como uma ação ardilosa e moralmente condenável, que visa enganar para a simples obtenção de compensações. Na Medicina, o conceito também se aplica e tem se alastrado como uma epidemia. Nas redes ou nos consultórios, lá está o vírus da picaretagem, se manifestando nos próprios médicos, em condutas antiéticas (por vezes, até criminosas), que expõem um verdadeiro vale tudo. Vale, inclusive, colocar em risco a vida dos pacientes. É fake news sobre diabetes, obesidade e até câncer de mama; falsas especialidades propagadas como legitimadoras de competência; aplicações de hormônio em excesso ou até do chamado chip da beleza; relações controversas com farmacêuticas. Tudo em nome da mercantilização da medicina.

Guarde bem essa expressão: mercantilização da medicina. E junte a elas informações falsas, ausência de evidências científicas, redes sociais e venda de tratamentos. Elas explicarão os próximos casos e a epidemia de picaretagem onde está mergulhada a área da saúde.

Febre dos hormonios

Na voz, nos fios de cabelo e principalmente em exames mais detalhados está o resultado das prescrições de hormônios como indicações milagrosas. A nova febre nos consultórios. A promessa dos médicos que fazem a indicação é rejuvenescimento, vigor, bem-estar e beleza. “Eles só não prometem olhos azuis, de resto, prometem tudo. Mas são todas promessas falsas. Há uma epidemia no de denúncias, de pseudomédicos, pseudocientistas”. O alerta é do endocrinologista Amélio Godoy, que, em entrevista à Metropole, criticou a prescrição excessiva, em especial, de testosterona, hormônio que, segundo ele, diminui o colesterol bom e aumenta os riscos cardiovasculares.

Na esteira dos hormônios, o chamado chip da beleza, um implante hormonal, é outro exemplo. Ele recentemente foi proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), após serem observados complicações como elevação de colesterol e triglicerídeos no sangue (dislipidemia), hipertensão arterial, acidente vascular cerebral e arritmiacardíaca. Ainda assim, até pouco tempo, era possível encontrar médicos anunciando implantes hormonais na internet como se fosse um sapato que se dá de presente no Dia dos Pais, com divulgação de preço, condições de pagamento e tudo. Isso mesmo com uma regulamentação de publicidade médica rígida. Mas, no final das contas, o que vale é a lucratividade neste mercado da Medicina. Os chips, por exemplo, podem custar ao paciente até R$ 10 mil e há médicos por aí somando a aplicação de 10 implantes por semana. Viva a saúde do bolso.

“Vejo tudo isso como um ataque à saúde pública, no desejo de ganhar dinheiro. São pseudo-profissionais, e quase todos afirmam que tem curso em Harvard, o que é uma mentira. Eles não são burros e têm muito poder de convencimento. Falam fácil, utilizam termos técnicos, inapropriadamente, convencendo o público de que eles estão falando uma coisa com embasamento científico, o que não têm”, afirmou.
Tudo pela saúde do bolso

Crítico ferrenho dos chips da beleza e de condutas que mancham a imagem da Medicina brasileira, o hepatologista Raymundo Paraná cita ainda os chamados shots e soros da imunidade ou da beleza, apontados por muitos como uma das maiores picaretagens dos últimos anos. Mas, para Paraná, além de picaretagem, é um estelionato, afinal prometem milagres e entregam sobrecarga e prejuízo ao fígado.

“Medicina sem evidência científica não garante segurança. O crime está em espalhar conceitos fisiológicos e farmacológicos falsos, prescrever coisas sem evidência científica e com risco comprovado, como fórmulas com chá verde, maca peruana, cúrcuma, pimenta negra, etc. Além de não ter respaldo científico, fere a ética, pois o médico não pode receber pelo que prescreve ou solicita. Nenhum médico pode lucrar com tratamentos. Isso é conflito de interesse”, aponta o hepatologista. A lógica de Paraná explica também o problema nas relações controversas entre os médicos e indústrias farmacêuticas, outra conduta já denunciada neste Jornal Metropole. Viagens, patrocínios e presentes aos médicos fazem parte de uma engrenagem sofisticada de laboratórios que buscam induzir ou negociar a prescrição de medicamentos, tornando a saúde uma moeda de troca.

Especialistas da picaretagem

Nessa onda de vender tratamentos “milagrosos”, as redes sociais se tornaram instrumentos poderosos. A estratégia é se tornar referência validado apenas pelas curtidas. Basta se dizer expert em algo, pregar uma revolução e até criar uma pseudo especialidade. É o caso da tal Medicina Integrativa e da Medicina Estética, que não são reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina.

O caso de repercussão mais recente traz um apanhado dos sintomas desta picaretagem: fake news, falsa especialidade, tratamento sem evidência científica e rede social como trampolim. No mês do combate ao câncer de mama, a médica Lana Tiani, do Pará, resolveu usar as redes para divulgar a falsa informação de que a doença que acomete mais de 73 mil pessoas por ano, segundo estimativa do Inca, não existe. E foi além: pediu que as mulheres parassem de realizar a mamografia. Ao final do vídeo, a explicação: ela oferecia um tratamento “milagroso”. Lana foi denunciada e a Justiça determinou a retirada das publicações e a proibiu de voltar a falar que mamografia é prejudicial.

Presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia, Tufi Hassan considera esse tipo de conduta não só um desserviço, mas uma aberração. Ele lembra que a mamografia de rotina pode levar ao diagnóstico precoce, reduzindo em até 30% o risco de morte. “Como uma pessoa, sem nenhuma qualificação, até porque ela se diz especialista em mastologia e ela não é escrita na nossa sociedade, põe dúvidas nas mulheres? Isso vai trazer um prejuízo muito grande”, alerta.

Problema de formação

As redes, aponta Paraná, são a vitrine e evidentemente estimulam este tipo de conduta, mas a raiz é muito mais profunda ou muito mais lá atrás, na formação desses profissionais. “Na medida em que você tem indivíduos mal formados tecnicamente ou moralmente, o que mais tem no Brasil, as pessoas desprezam evidência científica. Ou porque não sabem, não tiveram acesso, na formação não foi valorizada ou porque têm interesses específicos em trabalhar fora da ciência, que se tornou lucrativo. Depois das redes sociais, virou lucrativo criar um conceito, espalhar e rapidamente vender esse conceito”, explica o hepatologista.

Nas redes, com filtros apenas para a aparência, o terreno então se tornou fértil para espalhar falsas especialidade, venda de tratamentos sem evidências científicas, propagação de fake news e até propagandas ilegais, expondo uma epidemia de crimes e condutas antiéticas na Medicina.

Presidente do Conselho Regional de Medicina da Bahia, Otávio Marambaia lembra que existem normas estruturadas sobre o comportamento da categoria na divulgação de medicamentos, procedimentos e atividades nas redes sociais. E os médicos são habitualmente informados sobre essas normas. De acordo com ele, o conselho tem aberto processos e chamado esses profissionais para responder sobre seus atos.
Fonte:METRO1

 

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