Apesar de avanços e de mercado dissimular preconceito, racismo ainda usa Estado contra corpos negros
Na tela da TV Globo, mulheres negras protagonizam as três novelas atuais da emissora. Não são mais as garçonetes, recepcionistas, figurantes ou coadjuvantes. São as mocinhas, que têm destaque e ditam tendências fora das telas. O feito rendeu manchetes em alguns sites de entretenimento e foi celebrado por movimentos sociais. Não era para menos, afinal são anos de uma televisão embranquecida fingindo representar a realidade da população. Mas porque só agora? A resposta é clara: mercado e lucro, em um país onde quase 90% dos mortos por policiais são negros.
De mercadoria à mercado
A mesma resposta “justificava” a venda de africanos para serem escravizados nas Américas: mercado, lucro. É isso também que faz com que, em novembro, toda empresa pregue diversidade, use seus dois ou três funcionários negros em publicidade, lotem vitrines e redes sociais com estampas afros, deem oportunidades que nunca dariam a artistas negros. Foi isso também que fez, há algumas semanas, uma influenciadora famosa e dona de uma marca de maquiagem ir às redes sociais pedir desculpas chorando, após as críticas que recebeu ao lançar uma nova linha de maquiagem sem tons para mulheres negras. Dissimulado, o mercado – o mesmo que antes via, a cada porta de casa nos bairros populares, cartazes com o anúncio “alisa-se cabelo” – hoje não admite mais essa falha no personagem na corrida pelo lucro. Mas a verdade é que, como pontua pontua Guimário Nascimento, co-fundador do Instituto Cultural Steve Biko, se até o famoso 13 de maio de 1888, dia da abolição da escravatura no Brasil, os negros eram vistos como mercadorias. Após ele, também.
Problema de lucro
Esses mesmos empresários que lucram no mês de novembro são os responsáveis por negros recebem, em média, R$ 899 mil a menos que os não negros ao longo da vida laboral, e, muito provavelmente, devem ter sido contrários ao feriado nacional do dia 20. Mexeu no lucro, a máscara caiu. No final do ano passado, o presidente Lula promulgou um decreto que ampliava a celebração do Dia Nacional de Zumbi dos Palmares, tornando- -o feriado em todo o Brasil. Muito mais do que um dia de folga, a iniciativa já era uma reivindicação antiga do movimento negro, como forma de reconhecimento da importância de Zumbi, e chegou a ser anunciada pelo presidente em 2010, aqui em Salvador, na Praça Castro Alves. A promessa só se concretizou 13 anos depois, mas em cidades como São Paulo e estados como Rio de Janeiro, Alagoas e Amazonas, a data já era marcada como feriado.
Na cidade mais negra fora da África, que ironicamente nunca elegeu um prefeito negro, a data ainda passava despercebida, sob alegação de que o município já havia preenchido a quantidade de feriados prevista em lei. Uma questão meramente de calendário, assim como os 136 anos com a população negra jogado à própria sorte.
A carne mais barata do mercado
Ainda que a população negra lute e resista, em uma perspectiva em que o lucro se relaciona com a pele preta, a carne mais barata do mercado continua sendo ela, como cantou Elza Soares. Tão barata a ponto de ser quase cinco vezes mais abordada em ações policiais e eliminada pelo próprio Estado. Segundo um estudo da Rede de Observatórios da Segurança 87,8% das vítimas mortas por policiais eram negras. É quase a totalidade das vítimas de um contingente que tem 42% de sua corporação negra. É negro vendo crime na pele negra. É negro batendo, prendendo e matando negro em nome de um Estado racista.
Aqui é o Haiti
O historiador Dudu Ribeiro vê também racismo na própria legislação, o que rememora a famosa lei da vadiagem. “A criminalização da maconha a nível nacional, por exemplo, com forte preconceito racial envolvido, implica situações de continuidade do regime colonial”, aponta o historiador, se referindo a critérios subjetivos que estão presentes na lei e permitem que ela seja executada de forma racializada. Não é à toa que cerca de 70% dos presos no país são negros, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Enquanto isso, o relatório Justiça em Números 2024, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), expõe que apenas 14,3% do Poder Judiciário no Brasil é representado por negros e negras.
Economista, ativista e vereador reeleito em Salvador, Silvio Humberto acredita que o preconceito está sempre se reinventando à medida que a população negra se articula para ultrapassá-lo. Ele mina as conquistas e ainda elimina corpos negro. “A luta contra o racismo é como a linha do horizonte, às vezes você a olha e acha que está chegando ao fim, mas sempre se surpreende com algo mais distante”. Por isso, ele destaca que é preciso se atentar ao fato de que as pessoas negras continuam nas posições mais vulneráveis quando são analisadas as desigualdades no nosso país. “Confundir pretos no topo com pretos no poder induz à ilusão de que a favela venceu”, finaliza.
Fonte:METRO1